sábado, 23 de maio de 2009

Violência doméstica: retirada de queixa não livra autor de processo

Os denunciados por violência doméstica poderão ser investigados e processados pelo Ministério Público mesmo que a vítima tenha retirado a queixa diante de um juiz. Esta foi a decisão, por maioria, dos ministros da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), divulgada por diversos veículos da mídia a partir de 23 de setembro, data da sentença. Nenhuma das matérias, no entanto, explica com mais detalhes os aspectos considerados para tal sentença.
O processo de discussão iniciou-se quando os ministros do STJ acolheram um recurso do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios contra o trancamento de uma ação pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), após a vítima se retratar em juízo, dizendo que não queria mais “perseguir o agressor". E com base no artigo 16 da Lei Maria da Penha, o TJDFT considerou não haver possibilidade jurídica para prosseguir com a ação sem a concordância da vítima.
Para o Ministério Público, a decisão do TJDFT ofendeu, entre outros, os artigos 13, 16 e 41 da Lei Maria da Penha, além dos artigos 648, I, e 38 do Código de Processo Penal. A informação está em matéria do próprio Superior Tribunal de Justiça, onde se lê também que o MP:
“Requereu, então, a reforma da decisão, alegando que a ação penal do presente delito tem natureza pública incondicionada, não sendo dependente da representação da vítima. Em parecer sobre o caso, o Ministério Público Federal observou que a Lei Maria da Penha prescreve, em seu artigo 41, que não se aplica a Lei n. 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo o Ministério Público Federal, deve ser reconhecido o direito do Estado em dar prosseguimento à ação penal, vez que esta não depende de representação da vítima, devendo ser reconhecida a justa causa para a perseguição criminal do agressor”.
Processo deve continuar mesmo contra vontade da mulher
Em 13 de agosto, a 6ª Turma do STJ já havia rejeitado o pedido de habeas corpus de José Francisco da Silva Neto, denunciado pelo Ministério Público do Distrito Federal “por suposto crime de violência doméstica contra sua mulher”, concluindo “que violência doméstica contra a mulher é delito de ação penal pública incondicionada, ou seja, a ação penal pública pode ser ajuizada mesmo sem o consentimento expresso da vítima”.
A seguir, informou o Portal do STJ, a questão voltou a julgamento em recurso especial. Em todos os casos, as vítimas desistiram de prosseguir o processo, mas o Ministério Público deu continuidade. Em ambos os recursos, contestou-se a decisão do Judiciário do Distrito Federal, que afastou a aplicação da Lei e trancou as ações penais contra os agressores.
Imprensa não repercute e não esclarece
As matérias sobre a sentença da Sexta Turma do STJ podem ser consideradas, de certa forma, simplistas em suas explicações sobre os aspectos que embasaram esta decisão. E, com isto, surgem muitas dúvidas sobre o assunto. Por exemplo: todo tipo de violência doméstica contra a mulher será, a partir de então, considerado delito de ação penal pública incondicionada ou apenas nos casos em que a agressão resulte em lesão corporal?
Em entrevista ao Informativo Portal Violência Contra a Mulher, Juliana Belloque, defensora pública e doutora em processo penal pela Universidade de São Paulo, explica que a necessidade de representação da vítima, ou seja, de seu consentimento expresso para que a investigação e o processo contra o agressor continuem, era prevista para o crime de lesão corporal leve, no artigo 88 da Lei 9.099/95, que trata do procedimento dos crimes de menor potencial ofensivo.
Como o artigo 41 da Lei Maria da Penha afasta por completo a aplicação da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, observa a defensora, o STJ entendeu não haver mais necessidade de consentimento da vítima para o prosseguimento do processo e a aplicação de pena em relação a esse crime. “Existem outros crimes praticados no contexto da violência doméstica que ainda exigem a representação: ameaça e crimes que ofendem a honra da mulher, por exemplo. A alteração da Lei atinge, portanto, apenas o crime de lesão corporal leve.”
A violência doméstica é matéria de interesse público, não privado”, diz a promotora Eliana Vendramini
Ao fazer análise similar sobre o processo a pedido desteInformativo, a promotora de Justiça Eliana Faleiros Vendramini Carneiro, mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professora na PUC/SP, considera que a mídia não pôde explicar a contento essa decisão, pois ela trata justamente da representação da vítima – do seu ponto de vista, a matéria mais intrincada da lei. “Tanto é que o julgamento foi por maioria de votos (3 contra 2) e seu tema ainda será alvo de muita análise no meio técnico-jurídico”, observa.
A promotora também destaca a análise da desembargadora Jane Silva no acórdão, ao salientar que na Lei Maria da Penha "o legislador quis propor mudanças que pudessem contribuir para fazer cessar, ou ao menos reduzir drasticamente, a triste violência que assola muitos lares brasileiros", não deixando, portanto, a iniciativa da apuração do crime "nas costas" da vítima, já atemorizada pelo agressor, sempre muito próximo, devendo representar para que o Estado tome conhecimento da causa. “A própria lei inicia suas disposições deixando claro que, hoje, a violência doméstica é matéria de interesse público, não privado”, afirmou Eliana.
Na opinião da promotora, perguntam às vítimas, na maioria das vezes mal informadas, se elas pretendem representar, “coisa que já lhes impõe a responsabilidade do processo e o medo do retorno à violência do lar. O índice de retratação da representação é muito alto, e digo retratação, porque ela existe em sua forma tácita (não só expressa) e, quando a vítima vai a uma delegacia, sem dúvida já está se posicionando no sentido de buscar a tutela do Estado”.
De acordo com a promotora Eliana Vendramini, "a lei é muito boa, mas precisa ser aplicada com o cuidado e a celeridade propostas, para que as vítimas possam se manifestar livremente, ainda que seja para não representar e ter, de fato, uma vida digna. (...) Por ora, não sabemos se retratam por medo, por demora de uma solução, porque voltam ao conhecido ciclo da violência – perdoando mais uma vez – ou porque querem”.
Precedente não tem efeito vinculante
Por fim, para a defensora pública Juliana Belloque, a decisão segue à risca o artigo 41 da Lei Maria da Penha e consiste em importante precedente dos Tribunais Superiores, que pode começar a pacificar uma das grandes polêmicas de interpretação da lei.
Para a promotora de Justiça Eliana Vendramini, a cautela que devemos ter é que esta, por ora, é uma decisão que não tem efeito para os demais casos. “Denota importante linha de interpretação, faz precedente, mas não é vinculante. Portanto, precisamos ter mais julgados neste firme posicionamento, para que a lei, como enfatizou o desembargador Paulo Galotti, ‘não se torne letra morta’”.
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