domingo, 24 de maio de 2009

Acompanhamento de crianças vítimas de violência .




Todas as pesquisas apontam para as grandes proporções com que a violência ocorre na faixa etária pediátrica, apesar de subestimada oficialmente em todo o mundo.
Em 2000, considerando apenas os casos notificados às agências de proteção à criança nos EUA e que foram confirmados, 12 de cada 1.000 crianças haviam sido vítimas de maus-tratos, assim distribuídos:
negligência 62,8%, abuso físico 19,3%, abuso sexual 10,1% e abuso psicológico 7,7%. Uma vez que nem todos os casos são notificados e nem todas as notificações são
verificáveis, esses dados representam apenas uma aproximação da realidade.
De fato, em recente inquérito realizado diretamente com crianças e seus responsáveis,
em âmbito nacional nos EUA, verificou-se que mais de um em cada oito crianças e jovens entre 2 e 17 anos haviam sofrido alguma forma de maus-tratos no ano estudado.

No Brasil, estima-se que 20% das crianças e adolescentes sejam hoje vítimas de alguma forma de violência, mas não há pesquisas em âmbito nacional que tenham avaliado
a extensão dos maus-tratos praticados contra indivíduos nessa faixa etária.
A violência doméstica praticada contra crianças e adolescentes, segundo o Ministério da Saúde (MS) de nosso país, engloba os maus-tratos físicos, abusos sexual e psicológico e negligência/abandono.
O próprio MS, em outro documento, observa que essas formas de maus-tratos são, em sua maioria, praticados no interior das famílias (violência intrafamiliar),mas que também acontecem em outros ambientes, como instituições de internamento, na comunidade e no ambiente social em geral.
Por pretendermos fazer uma abordagem prática da questão, não cabe discutir as nuances existentes em cada um dos termos anteriores.
Ao citarmos os maus-tratos, a violência ou os abusos praticados contra crianças e adolescentes, estaremos nos referindo aos quatro tipos supracitados (físico, sexual, psicológico e negligência), praticados por familiares ou não, no ambiente doméstico
ou fora dele.
A distinção entre cada tipo de abuso e entre a violência intrafamiliar e a extrafamiliar será apontada sempre que necessário.
Livros, manuais, documentos oficiais e artigos brasileiros têm tratado das questões conceituais e procurado orientar profissionais das mais diversas áreas para a identificação e as primeiras medidas a serem tomadas diante das situações suspeitas ou confirmadas de maus-tratos contra crianças.
Optamos, neste artigo, por explorar aspectos práticos voltados para o acolhimento e o acompanhamento das crianças vitimizadas e de suas famílias nos serviços de saúde.
Foi expressivo o número de trabalhos sobre abuso sexual surgidos nesta revisão, certamente devido à preocupação que esse tipo de violência traz para a sociedade,
gerando mais pesquisas a respeito, como já apontado em estudo anterior, mas também pela nossa opção por enfocar o acompanhamento, que é mais estudado em vítimas de abuso sexual.
Cabe ressaltar que muitas das questões identificadas nesses trabalhos se aplicam também aos demais tipos de maus-tratos.
O acolhimento da criança e da família. As funções-chave do setor da saúde no sistema de proteção à criança são7:
identificar e notificar casos suspeitos;
implementar serviços para diagnóstico e tratamento;
interagir com agências de proteção;
atender às demandas judiciais;
fornecer informações aos pais sobre necessidades, cuidados e tratamento de seus filhos;
identificar e prover suporte para famílias de risco para maus-tratos;
desenvolver e conduzir programas de prevenção primária;
providenciar treinamentos e participar de equipes multidisciplinares.

A capacidade do profissional de identificar ou suspeitarde violência é o primeiro passo para a efetivação de um atendimento.
Considerando que o pediatra pode ser o único profissional a ter contato regular com crianças maltratadas antes que elas ingressem na escola13, imprimir escuta e olhar ampliados seria uma atitude essencial para tornar visível uma situação de violência.
Ao atender a família de uma criança vítima de violência, é recomendável que o profissional tenha uma atitude de acolhimento, não julgadora, não punitiva, ainda que o agressor esteja presente.
Tal comportamento visa a não provocar reações negativas ou mais sofrimento para a
criança e os familiares, além de proporcionar relação de confiança, que facilitará a avaliação da situação e o planejamento do acompanhamento posterior, com maior
probabilidade de adesão.
As possibilidades pessoais de cada profissional e de cada serviço influenciam na forma de acolhimento e exigem adaptações específicas para conduzir os casos.
Como regra geral, deve-se evitar intervenções precipitadas que não permitem um tempo razoável para compreender a situação que se apresenta e para concluir sobre a melhor conduta a ser tomada15, que pode ser até mesmo a decisão de deixar para agir em um outro momento, caso a criança não corra riscos iminentes.
Todas as crianças que sofreram maus-tratos se beneficiam de uma intervenção psicoeducativa, que pode ser feita pelo profissional que inicialmente reconheceu o abuso.
No caso específico do abuso sexual, esclarecer a responsabilidade do agressor pelo ato, discutir o conhecimento sobre comportamentos considerados sexualmente abusivos e a segurança futura da criança são temas que podem ser tratados, por exemplo, pelo pediatra.
A proteção da criança deve nortear todo o atendimento prestado, tendo como objetivos seu bem-estar e o de seus familiares, sua segurança e a garantia da sensação de pertencer a uma família e a um lar. Essa visão ajuda o profissional a acolher a família e adotar atitude empática para com os pais.
Múltiplos fatores fazem da emergência uma das principais portas de entrada das vítimas de maus-tratos:
a natureza aguda das lesões, a carência de assistência primária, a proximidade do local de moradia e o horário de funcionamento.
Sendo assim, profissionais desse setor necessitam habilidade para reconhecer e diagnosticar violência, entender suas conseqüências e manejá-las adequadamente.
Saber avaliar traumas físicos e emocionais auxilia
na detecção dos pacientes que apresentam traumas decorrentesde violência, sem estigmatizá-los por apresentarem problemas suspeitos.
Quando alguém sofre um ato violento, experimenta sentimentos de desamparo e falta de controle da situação.
Se a violência ocorre contra uma criança, além de atingir a própria vítima, esses sentimentos se estendem aos familiares.
É fundamental considerar e procurar reverter tais sensações. De fato, uma das ações mais importantes do pediatra de emergência é a possibilidade de prevenção da
síndrome do estresse pós-traumático (SEPT), que ocorre em 15 a 67% das crianças e jovens expostos à violência.
A SEPT caracteriza-se pela persistência de um conjunto de sintomas (reexperimentação da violência sofrida, evitação e estado de hiperalerta) por um período superior a 1 mês após o trauma.
Tanto a criança quanto os pais podem desenvolver os sintomas. Durante a interação necessária entre o profissional, a criança e a família para os cuidados na emergência, algumas atitudes podem ser tomadas pelo médico a fim de promover a resiliência dos pais e da criança e auxiliar os pais a lidar com os possíveis sintomas da SEPT:
falar brevemente com as crianças e adolescentes a respeitodas diversas reações normais ao trauma (.Você pode se encontrar pensando muito a respeito ou ficar tentando muito não pensar ou se sentir assustado....); ensinar e incentivar os pais para que monitorem reações normais ao trauma, tanto deles próprios quanto dos filhos; esclarecer como as reações dos pais podem ajudar ou atrapalhar suas próprias habilidades para dar suporte às suas crianças.
No entanto, a dinâmica de atendimento na emergência, com demanda além da disponibilidade de profissionais e exigência de atitudes imediatas após rápidas avaliações, compõe um quadro tal que dificulta desenvolver algumas ações de maneira adequada. Sensibilizar e capacitar os profissionais, criar rotinas que facilitem o atendimento e articular referências são considerados aspectos essenciais ao bom desempenho na emergência.
Apenas um pequeno percentual de vítimas de maustratos (4%) necessita hospitalização após atendimento em emergência. Além da indicação médica, a Academia Americana de Pediatria recomenda a internação de crianças maltratadas por necessidade de proteção (o hospital pode ser o abrigo mais acessível em curto espaço de tempo) ou para que seja feito diagnóstico da situação (intervenções diagnósticas e observação detalhada da interação familiar).
Pode ocorrer, ainda, que crianças sejam internadas por problemas clínicos diversos e a suspeita de maus-tratos seja levantada durante a internação. Isso decorre da oportunidade de observação tanto das relações familiares quanto dos cuidados dispensados pelos responsáveis à criança internada.

Na enfermaria, entretanto, quando o período de hospitalização é mais longo, a proximidade em tempo integral da equipe de saúde com a família pode causar
problemas na condução dos casos. É freqüente que responsáveis por outras crianças e mesmo profissionais despreparados tomem uma posição de hostilidade para
com os familiares, seja culpabilizando-os por não terem conseguido proteger a criança, seja por serem eles próprios os agressores.
Esse tipo de atitude, além de não ajudar o paciente, pode dificultar qualquer tentativa de avaliar aspectos sociais e psicológicos e de investir na
mudança de comportamento dos responsáveis e ações possíveis durante a internação.

A suspeita de maus-tratos pode surgir também no decorrer do acompanhamento ambulatorial.
Considerando a existência de vínculos seguros e inseguros entre pais e filhos, a percepção do tipo de vínculo existente pode permitir a identificação daqueles que podem levar ao risco de maus-tratos.
Sendo o abuso psicológico isolado, o tipo de maus-tratos com a menor taxa de confirmação, o espaço da consulta médica pode permitir observar um relacionamento
psicologicamente abusivo por parte dos cuidadores, auxiliando na sua detecção.
O pediatra, geralmente, conhece as características emocionais, do desenvolvimento, educacionais e físicas de seu paciente antes do início de um eventual abuso, sendo
capaz de detectar as subseqüentes alterações adversas decorrentes dele.
Por outro lado, para o profissional que faz o acompanhamento de puericultura de uma criança que se torna vítima de violência intrafamiliar, pode ser difícil aceitar que sua tarefa de reforçar vínculos nem sempre seja alcançada.
Chegar a um diagnóstico de maus-tratos éenfrentar a própria limitação da atuação preventiva. Além disso, ao evidenciar os maus-tratos, surge a culpa pela
possibilidade de quebrar um aparente equilíbrio familiar.
A dificuldade de romper com o modelo idealizado acerca da instituição família e de nos estranharmos em relação às nossas próprias referências pode tornar a situação aindamais complexa de ser enfrentada.

É importante considerar que a gravidade dos efeitos negativos dos maus-tratos pode ser amenizada por efeitos protetores, dentre eles a atuação profissional precoce e
eficaz.
Atuação precoce não deve, entretanto, ser confundida com atuação precipitada, cuja boa intenção de tentar ajudar pode impedir um tempo mínimo necessário para que
a equipe de saúde compreenda a situação que se apresenta e para que a família reconheça e exponha suas necessidades e suas possibilidades.
Em geral, o que a criança maltratadaprecisa imediatamente é de cuidado, antes mesmo de se pensar na proteção judicial.
O entendimento, ainda no serviço de saúde, das circunstâncias que levaram ao abuso
e do contexto existente para desenvolver qualquer trabalho com a família pode ser determinante para as medidas de proteção que serão adotadas pelo Conselho Tutelar, uma vez que tais informações podem e devem ser transmitidas através da notificação.

Já parece estar suficientemente compreendido que o segredo profissional, em termos de maus-tratos contra a criança, protege apenas ao adulto agressor, que poderia ser
prejudicado ante a revelação dos fatos. Tem sido uma prática dos serviços que acompanham crianças vitimizadas explicar aos pais a importância e necessidade da notificação e a visão de não compactuar com o comportamento de violência, colocando a segurança da criança em primeiro plano.

Para que não se arrisque a vida ou a saúde psicofísica da criança, é fundamental que o profissional reflita sobre suas próprias convicções e vença tanto os excessos de cautela (que levam a notificações apressadas, com pouca ou nenhuma fundamentação) quanto a atitude de não compromisso para realizar a notificação.

A notificação de casos suspeitos e confirmados de maus-tratos é obrigatória para profissionais de saúde, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Aos Conselhos Tutelares, que recebem as notificações, cabe defender e garantir os direitos das crianças e adolescentes, detendo o poder de aplicar medidas de
atendimento e responsabilização quando julgar necessárias. No entanto, os Conselhos Tutelares são considerados órgãos pouco resolutivos, por uma série de motivos:
têm sobrecarga de trabalho; muitos conselheiros assumem seus cargos sem a devida capacitação, demonstrando pouco conhecimento sobre o ECA e o trabalho prático
vinculado a ele; suas ações não costumam ser planejadas, pautando-se em questões pontuais, muitas vezes utilizando-se de intervenções fragmentadas e de cunho
emergencial; a infra-estrutura de trabalho é precária e falta retaguarda de serviços, o que causa relação conflituosa com outros órgãos que atendem às vítimas.

Diante de todos esses problemas, é recomendável que o profissional de saúde não se exima do papel de tratar, referir e prevenir a violência familiar. A proteção da
criança não pode ser confundida com as ações de notificação e investigação, ou seja, a proteção não pode ser percebida como responsabilidade fundamentalmente dos
serviços legalmente destinados a essa função.
Esse tipo de percepção pode expor a criança pelas seguintes razões:
a multiplicidade de problemas envolvidos nos casos de maus-tratos demanda o envolvimento de diversas fontes de ajuda;
é impossível para os serviços de proteção manter o monitoramento constante das famílias e pode haver redução das ações diretas da comunidade e dos profissionais de outras áreas.

Muitas vezes, o próprio serviço de proteção desvia-se da ação de proteger a criança, uma vez que, por obrigação legal, deve reunir evidências e preparar documentos para apresentar à Justiça.
Nos EUA e na Austrália, cerca de dois terços dos casos notificados e investigados de suspeitas de maus-tratos nunca serão confirmados, e uma grande proporção de casos confirmados não recebe qualquer outro serviço além da própria investigação.

Faltam estudos, na maioria dos países, sobre o efeito das notificações de suspeitas de maus-tratos às agências de proteção. A dificuldade de estudar a associação entre
a atuação desses serviços e melhores resultados para as crianças expostas a maus-tratos está na grande diversidade de fatores de confundimento envolvidos nessas
situações, tais como a duração do abuso, a situação familiar e os níveis de suporte das famílias.
Consideramos que, independente dos resultados obtidos com a notificação, o conselheiro tutelar deve ser encarado como um parceiro que abre possibilidades de ação complementares àquelas desenvolvidas pelo profissional de saúde, as quais são fundamentais à meta comum de proteger a criança.

O acompanhamento pelo pediatra

Muitos Conselhos Tutelares, à semelhança do que ocorre com agências de proteção em outros países, dispõem de poucos recursos para acompanhar todos os casos a eles notificados.
Além disso, acreditamos que, no Brasil, ocorra o mesmo que nos EUA, onde a grande
maioria dos casos de abuso físico e sexual não chega até os serviços de proteção. Sendo assim, o pediatra cujo paciente teve suspeita, é ou foi vítima de maus-tratos tem o dever de acompanhá-lo, a fim de zelar pela sua segurança. É importante, nesse processo, questionar ativamente a criança e os responsáveis a respeito de novos
episódios de violência;
realizar sempre exame minucioso em busca de evidências físicas e estar atento para
alterações comportamentais e emocionais compatíveis com abuso, amplamente descritas na literatura.

Há poucos trabalhos sistemáticos ou com dados robustosque demonstrem qualquer forma particular de intervenção que proteja definitivamente crianças contra abuso, o
mesmo ocorrendo com a prevenção de revitimização.
Taxas em torno de 25 a 31% de revitimização de abuso físico em crianças menores de 1 ano apontam para séria falha na prevenção secundária de agressão a esses bebês, cuja
conseqüência pode ser até mesmo a morte.
Um evento prévio de abuso é considerado risco para outros episódios, devendo a criança ser monitorada pelos profissionais de saúde e de assistência social.
Um dos principais objetivos do acompanhamento deve ser o fortalecimento das famílias, já que a presença da família nem sempre significa família presente e estruturada.

Parecem ser boas medidas eleger o afeto como valor e olhar a família que sofre, ao invés de tratá-la como de risco ou incapaz. Este trabalho pode auxiliar tanto na reversão de comportamentos abusivos (violência intrafamiliar) quanto no desenvolvimento de estratégias para evitar contatos com agressores externos. Preservar relações familiares e garantir o crescimento da criança no seu próprio meio é essencial para transmitir segurança e a sensação de pertencimento ideais para seu desenvolvimento.
Assim, as abordagens devem ter como alvo a família e não apenas as crianças, respeitando sua cultura, suas crenças e seus costumes, não tomando como parâmetro
os valores próprios do profissional. Deve-se acreditar no poder e no potencial das famílias para mudar suas vidas e ajudá-las a identificar e buscar os recursos internos e externos existentes. É importante respeitar as diferenças entre as famílias e entre cada um de seus membros, detectando suas necessidades específicas.
Cabe aos profissionais não apenas dar suporte aos pais e ensiná-los a importância de responderem construtivamente diante de uma situação de abuso, mas também ajudá-los a desenvolver essas habilidades. É indicado incentivar respostas protetoras que ampliem seu suporte social e reduzam estratégias contraproducentes (por exemplo,negação do problema, aumento de uso de álcool,etc.).
Pesquisas demonstram que o fortalecimento das respostas das famílias ao abuso sexual é um método eficiente para reduzir traumas nas vítimas.

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