domingo, 24 de maio de 2009

Desafios para o pediatra - o texto


No caso da violência intrafamiliar, busca-se criar um contexto de responsabilização para o perpetrador e de segurança para a vítima. Para isso, é necessário garantir um
trabalho árduo de ajuda aos perpetradores. A habilidade dos membros da família para trabalhar cooperativamente e olhar os outros como apoios potenciais é o cerne de um
plano sólido de reabilitação.
Não é raro, porém, que o agressor não aceite a intervenção para si próprio,insistindo em que apenas a criança seja tratada, numa tentativa (muitas vezes inconsciente) de
mudar o foco do problema.
Ajudar a compreender de forma mais aprofundada a situação familiar pode ser um trabalho desenvolvido pelo pediatra no qual a família confia, a quem procura regularmente e que será o responsável pelos encaminhamentos posteriores.
Fazer o agressor tomar para si a responsabilidade dos atos violentos que cometeu
desencadeia freqüentemente nele próprio a capacidade de desenvolver empatia e o desejo de compreender o ponto de vista da vítima.
Isso torna mais fácil a aceitação do tratamento para tentar reverter o comportamento inadequado para com a criança.
Abordagens ativas dos serviços para inclusão dos pais não agressores no tratamento devem respeitar escolhas individuais e analisar obstáculos ao acompanhamento, tais
como dificuldade de transporte, cuidados com a criança (disponibilidade de creches), estigmas e a possibilidade de atendimentos em outros locais fora do serviço de saúde.
Verificou-se que o envolvimento dos pais ou responsáveis não abusadores na psicoterapia está associado a resultados benéficos para a criança que foi vítima de abuso sexual, especialmente as mais jovens.

Considerando que crianças que vivem em lares onde há violência entre o casal têm maior risco de serem agredidas e que grande percentual delas sofre seqüelas emocionais por essa vivência mesmo sem sofrer agressão direta, deve-se investir para que casais em conflito sejam encaminhados para tratamento como forma de proteção da criança.
Estudos nos EUA evidenciaram que a violência entre o casal está presente em cerca de 40% dos casos graves ou fatais de maus-tratos contra crianças e em mais de 50% dos
casos suspeitos de maus-tratos atendidos em hospitais.
Questionar ativamente os responsáveis a respeito de conflitos do casal deve fazer parte da anamnese pediátrica, como meio de prevenir a violência contra a criança.

Na maior parte dos trabalhos sobre violência intrafamiliar contra crianças, o pai biológico e, principalmente, outros substitutos da figura paterna (padrasto, companheiro ou namorado da mãe) são estudados como agentes da agressão. Isso decorre da alta freqüência com que aparecem nesse papel em todas as pesquisas e por ter sido demonstrada associação entre sua presença na casa e o maior risco de maus-tratos.
Por outro lado, foi verificado que,quando um companheiro da mãe maltrata seu filho, ela pode ser considerada negligente por não ter protegido a criança,e a ação da gência de proteção é dirigida à mãe.
Políticas assim tornam obscura a verdadeira natureza do episódio inicial de maus-tratos e privam os homens da possibilidade de sofrerem intervenções que venham a auxiliá-los.
Ao mesmo tempo, pesquisas demonstram que o envolvimento do pai nos cuidados da criança está associado a uma série de benefícios para ela e para a mãe.
Residindo ou não com a criança, o pai biológico desempenha vários papéis, econômicos ou outros, que configuram a segurança, o risco e o bem-estar da criança. Ele também é importante para o bem-estar dos outros membros da família e, particularmente, para a qualidade dos cuidados que ele próprio e a mãe oferecem à criança.

Sendo assim, é recomendável que tanto as agências de proteção quanto os serviços de saúde incluam os pais e substitutos da figura paterna nas ações de prevenção e de
monitoramento da violência contra a criança e o adolescente.
É essencial desenvolver estratégias e modelos de intervenção que venham ao encontro das necessidades dos pais, das suas motivações para freqüentar serviços, dos seus
perfis de risco, de seus padrões de solicitação de ajuda, bem como estratégias que desenvolvam elementos de proteção e diminuam os elementos de risco dos pais para maus tratos.
Nesse processo, pode ser necessário vencer a barreira que a própria mãe representa através de sua resistência à participação do pai.

Considerando que poucos são os avós que não cuidam, em algum momento, de seus netos e o número expressivo de avós cuidadores com os quais nos deparamos na prática
pediátrica, também esses membros da família merecem especial atenção e cuidado por parte do profissional de saúde. Muitas vezes, diante de crises familiares, os avós
têm efeito tranqüilizador do ponto de vista das crianças, mas também podem se somar ao conflito e contribuir para o aumento da tensão familiar.
Vários períodos no processo de acompanhamento das vítimas de maus-tratos podem ser considerados delicados para a criança, a família e para os próprios profissionais de
saúde, a partir do momento em que a violência praticada contra a criança se torna pública. É importante que o profissional esteja ciente de que vários sentimentos podem estar presentes em todos os envolvidos, durante muito tempo, em maior ou menor grau: medo, angústia, revolta, sensação de impotência, culpa, vergonha, etc.

Quando se trata de abuso sexual, a reação dos pais e dos profissionais à descoberta ou ao processo de revelação pode ajudar a vítima a se recuperar ou traumatizá-la ainda mais.
A criança usualmente quer que a situação mude sem confrontação, sem intervenção externa e sem a separação dos membros da família. No entanto, a descoberta desse
tipo de abuso tipicamente catapulta a criança e a família em uma crise, em geral mais grave quando o abuso é intrafamiliar. É importante que o profissional valorize tanto
a revelação da criança, eximindo-a da responsabilidade pelo que ocorreu e pelas conseqüências da revelação, quanto a credibilidade dada à criança pelos responsáveis que buscaram ajuda do serviço de saúde.

Estudos têm sido feitos sobre a reação de mães não agressoras à revelação de abuso sexual de seus filhos.
Parece haver uma expectativa por parte dos profissionais de que elas, sem qualquer treinamento profissional, muitas vezes com histórias pessoais de abusos não tratados e vivenciando relações violentas em casa, seriam capazes de acreditar imediatamente numa revelação e agir a favor dofilho vitimizado.
Essa expectativa contrasta com a reação que vemos na maioria dessas mães, que se sentem culpadas por terem falhado na proteção, revoltadas pela traição da confiança por parte do agressor (quando este é conhecido ou integrante da família), incrédulas com o que ocorreu, perdidas em relação às atitudes que devem tomar.


Acompanhamento de crianças vítimas de violência .
Ao mesmo tempo, na maioria das vezes, tentam entender a
situação e apoiar e proteger sua criança, ainda que nem
sempre consigam. Nesse sentido, as mães necessitam
tanto de apoio quanto os filhos durante o processo subseq
üente à revelação do abuso. Em geral, a pessoa protetora
(seja ou não a mãe) necessita desse apoio, mesmo em
outros tipos de abuso. Suas respostas são processos, e não
eventos pontuais. Muitas vezes, se os pais ficam muito
desestruturados para apoiar a criança ou se o familiar que
está tentando proteger é ameaçado pelo agressor, faz-se
necessário identificar um outro elemento protetor na família
ou mesmo fora dela.
No caso do abuso sexual, a crise da mãe e sua necessidade
de suporte são freqüentemente minimizadas pelos
profissionais frente à necessidade de proteção física da
criança. Para um bom resultado da atenção, recomenda-se
que a mãe seja vista pela equipe de saúde tanto como
cliente (com necessidades de suporte) quanto como um
membro da equipe (incluída nas decisões para a segurança
da criança.




Considerando que a simples suspeita de qualquer tipo de maus-tratos pode causar grandes transtornos para a família e para a criança, os mesmos cuidados de acompanhamento dos casos devem ser tomados independente do abuso estar confirmado ou não.
A confirmação dos maus-tratos pode ser uma tarefa difícil, caso não haja evidências físicas ou testemunhas, o que geralmente acontece.
O exame de corpo de delito, na maioria das vezes, frustra as expectativas da obtenção de provas materiais dos maus-tratos perpetrados contra as crianças (até mesmo quando se trata de estupro), podendo ser entendida, então, como uma falsa alegação contra o agressor.
Paradoxalmente, a sociedade exige que a vítima, além de violentada, também se apresente fisicamente ferida.
No caso de crianças, há o agravante de não ser dada à sua palavra a mesma credibilidade que à do agressor.
Em Hamburgo, na Alemanha, médicos legistas ficam disponíveis 24 horas por dia para examinar as vítimas.
Se acionados pelos médicos que prestam o atendimento, não há necessidade de
envolvimento da polícia ou de uma queixa oficial.
Os dados ficam guardados no prontuário médico, para serem utilizados de acordo com a necessidade posterior.
Essa iniciativa decorreu do fato de que apenas um pequeno número de vítimas realizava exame de corpo de delito enquanto o exame era vinculado a procedimentos legais.

Mesmo em países onde a justiça criminal e os serviços forenses funcionam bem, apenas um pequeno número de casos de maus-tratos (incluindo os de abuso sexual, que mais comumente chegam a processo legal) chega a julgamento, e menos ainda resultam em condenação.
Ou seja, muitas vítimas de violência são submetidas a procedimentos forenses invasivos sem ganhar nenhum benefício real a partir das evidências coletadas. Constata-se que os melhores preditores para saber se um caso de abuso sexual vai ser referido a processo criminal são a idade da criança (situações envolvendo vítimas pré-escolares têm menor probabilidade, provavelmente devido ao questionamento de suas competências: possibilidade de contaminação e de sugestionamento, capacidade de memória, consistência através do tempo), o sexo e a severidade do abuso (casos
mais graves envolvendo meninas têm maior probabilidade de serem processados legalmente).
A literatura sugere que os 7 anos é a idade mágica que diferencia os casos processáveis dos não processáveis. Os agressores com relações mais próximas à criança menos provavelmente são acusados judicialmente.

No entanto, é comum que a notificação gere uma expectativa por justiça entre os familiares.
Em geral, o profissional de saúde que notificou passa a ser visto como co-responsável pelos desdobramentos (positivos e negativos)dos diversos encaminhamentos que são feitos a partir da notificação.
Nesse sentido, é importante abrir espaço para discutir com as famílias os papéis e limitações de cada instituição, para que a relação médico-paciente seja preservada.

Para isso, é necessário que o pediatra conheça a legislação, os diversos órgãos existentes e as funções de cada um, suas possibilidades e dificuldades de atuação. Isso pode ajudá-lo a compreender alguns desdobramentos não esperados e a interferir de forma mais eficaz, inclusive na orientação aos pais.

Esses são apenas alguns dos problemas críticos pelos quais passam o paciente e a família envolvidos em situação de violência.
Poderíamos citar, ainda, a separação dos casais, a necessidade de afastamento da criança ou de um dos familiares por ordem judicial, a necessidade de mudança de moradia ou escola, estigmatização da família pela comunidade, dentre tantos outros que tornam imprescindível o acompanhamento, o apoio e as orientações por parte dos profissionais de saúde, também atores desse processo.

Idealmente, esse acompanhamento deveria ser feito por equipe interdisciplinar organizada, disponível e com recursos suficientes, o que ainda não é a realidade na
maioria dos lugares.
As famílias necessitariam dessa equipe perto de seus domicílios e, preferencialmente, no mesmo local onde se consultaram pela primeira vez. Essa possibilidade pode ser determinante na adesão ao tratamento ou em seu fracasso.
Abandonos de até 30% dos casos acompanhados estão relatados na literatura43,44.
Atuar em equipe multiprofissional é recomendado e necessário nas situações de violência praticada contra a criança, uma vez que nenhuma instituição, indivíduo ou
disciplina dispõe de todo o conhecimento, habilidades ou recursos para prover as necessidades das vítimas e suas famílias.
O dano será minimizado se as necessidades médicas, psicológicas, sociais e legais forem garantidas.
Para que várias instituições trabalhem em conjunto em prol da proteção da criança, é recomendável que: haja um ambiente de respeito e verdade no compartilhamento de
Acompanhamento de crianças vítimas de violência .

Informações, percepções e respostas;
chegue-se a um acordo sobre valores fundamentais;
desenvolva-se uma linguagem comum;
mantenha-se o foco em objetivos comunseleitos por consenso;
demonstre-se respeito em relação ao conhecimento e à experiência de cada um;
assuma-se que todas as partes têm intenções positivas, ainda que as idéias, perspectivas e abordagens sejam diferentes;
reconheça-se o poder, as necessidades e as limitações de cada parte;
trabalhe-se os conflitos de forma produtiva e compartilhem-se as tomadas de decisão, os riscos e responsabilidades.


Os prontuários deveriam conter informações focadas nas questões de necessidades da
família e de proteção da criança, buscando um equilíbrio entre confidencialidade e responsabilidade para proteger as crianças e apoiar seus responsáveis.
Esse trabalho integrado pode evitar que políticas de atendimento às vítimas de violência resultem em vitimização secundária ou em desestímulo para procurar cuidado ou revelar o abuso.

O resultado satisfatório de uma intervenção nos casos de maus-tratos seria a cessação da violência. Às vezes, o resultado possível é uma separação segura do casal ou um
responsável violento conseguir manter contatos seguros com as crianças.
Tais limitações no alcance de resultados satisfatórios, no entanto, não devem ser vistos como fracassos da atuação do profissional de saúde. É importante ter clareza de que nem sempre conseguimos avançar o quanto seria teoricamente desejável, mas o quanto é possível para cada família e para cada instituição envolvida.

Nos EUA, a decisão de encerrar o envolvimento de uma agência de proteção baseia-se no monitoramento e na avaliação de cada caso e é tomada em conjunto com a família e com outras pessoas importantes para ela, considerando a segurança da criança.
A agência pode até mesmo apoiar o direito da família de encerrar o acompanhamento
quando os riscos para a segurança da criança forem reduzidos significativamente e a família acreditar que não necessita mais dos serviços disponíveis.

Prevenção

Ações de prevenção primária e promoção necessitam caminhar em paralelo às de atenção às vítimas, para que se consiga, no futuro, reduzir a incidência da violência contra
crianças.
Devido ao imenso número de casos de maus tratos existentes (da ordem dos milhões em todo o mundo,tornando impraticável a ação das agências de proteção em todos eles) e à percepção de que a negligência é o tipo de maus-tratos mais identificado, tem-se considerado mais produtivo investir em políticas de prevenção primária do que em políticas cujo foco está na identificação e responsabilização de casos individuais.

Atuar na prevenção requer agir em vários níveis concomitantemente:nos indivíduos (crianças e adultos, vítimas e agressores), nas relações pessoais, na comunidade e na
sociedade.
Tão importante quanto identificar os fatores de risco é a identificação dos fatores de proteção, os quais promovem a resiliência.
Muitas vezes, são tantas as dificuldades para reverter aqueles fatores de risco que
fogem ao alcance da atuação do setor saúde, que tentar minimizá-los através da identificação e fortalecimento de relações positivas que dêem suporte à criança pode ser a opção possível.
Sendo a negligência e o abuso físico os tipos de maus tratos mais comumente cometidos contra a criança e sendo essas formas de violência muito relacionadas com vínculos
entre pais e filhos e questões culturais da educação infantil, parece claro que o pediatra pode, sem se desviar muito da sua rotina, identificar famílias de risco e atuar na prevenção.

A atenção desenvolvida por profissionais que atuam diretamente nas comunidades e nas unidades básicas de saúde permite trabalhar a prevenção primária.
Visitas domiciliares têm se mostrado eficazes para mudanças de comportamento de pais em risco de perpetrar maus-tratos.
Ajudar os pais a desenvolverem uma percepção real da criança, ensinando-os sobre suas possibilidades e necessidades, orientá-los preventivamente sobre o fato de que
utilizar palavras ou gestos impróprios, bem como deixar de utilizar palavras de suporte ou de amor pode prejudicar a criança13, são exemplos de ações simples que podem auxiliar na construção de um ambiente saudável para a família e para o desenvolvimento das crianças, futuros cuidadores.



Conclusões

Os maus-tratos contra crianças provocam nos profissionais sentimentos que se mesclam, oscilantes e até contradit
órios. Transita-se por um caminho de sensibilização e
aprendizado, onde cada um percorre um trajeto pessoal
paralelo ao que essa temática vem percorrendo na comunidade
médica22. Tratando-se a violência de tema que gera
sofrimento, desperta questionamentos, sensação de risco e
insegurança, seria necessário que o profissional estivesse
inserido em oportunidades sistemáticas de discussão, sensibiliza
ção e capacitação46.
Alguns desafios estão postos para os pediatras:
. Envolver-se sem gerar mais violência.
. Ter as famílias, e não apenas as crianças e mães, como
alvo da atenção.
. Incluir os responsáveis que cometeram a agressão,
ajudando-os a mudar comportamentos.
. Desenvolver habilidades específicas para lidar com as
situações, através da aquisição de conhecimentos teó-
ricos e da atuação prática multiprofissional, interdisciplinar
e intersetorial, destacando-se, sobretudo, o trabalho
conjunto com o Conselho Tutelar.
. Avaliar, na sua rotina de atendimento, fatores de risco
e protetores relacionados à criança e à família, fortalecendo
os de proteção e trabalhando para minimizar ou
afastar os de risco.

Nenhum comentário: